sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Abraço de Casa



os braços da Casa
começaram a se abrir
muito antes que eu chegasse
ou soubesse

a mão
me tocou em pleno afeto
ainda no caminhar para a mata

antes que pisasse o chão sagrado
o coração 
já pulsava em minha volta

os olhos
me seguiam atentos

eu não encontrei... só agora, sei
fui encontrada 

num momento
várias vozes e olhares me chamaram

fui e pensava que chegava
já estava, não sabia, sentia

a Casa me acolheu 
num abraço infindo para minha alma
ao primeiro passo
adentro

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

sem medo


eu viveria na mata
sem medo

entre a força que alimenta e o mato que protege
dormindo sob a paz das folhas
bebendo dos espelhos d'água
fascinando com as cobras que encantam sem matar
sonhando com as ondas do mar

eu ficaria na mata...
entre arcos infalíveis e folhas que curam
esperando que por vezes
as tempestades  e os ventos
fizessem barulho e limpeza das coisas
que só a água do céu purifica

pés na lama, pés na pedreira
mãos na forja, mãos na madeira
pés na palha, cabeça na esteira

ouro, cobre, prata e pérolas no olhar

seria cachoeira até fluir no mar
e misturar as águas

e ainda
sem medo
viveria na mata 




terça-feira, 6 de novembro de 2012

Menino-Velho das Folhas

O vento-mulher... um dia
Espalhou todas as folhas do mundo

O menino-velho juntou
do mesmo jeito...
Arrumou
Investigou
Aprendeu 
E nos devolveu em sabedorias
Herança bendita da ancestralidade

Menino-velho...
Cuidadoso, olha por trás das folhas
Misterioso, deita embaixo delas
Se protege do mal e dos espantos
Do medo e das falsetas da caminhada

Com o coração aprendiz,  a mente inquieta, a fé criança
Vai vendo... nem sempre precisa escudo
Nas folhas também pousam borboletas
Gotas de chuva, pétalas e abelhas
Por não haver outro jeito, por sabedoria

As folhas do Menino-velho
Adubam tudo




segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O Poeta (para José Carlos Limeira)




O Poeta tem uma uma quartinha cheirosa

uma água que fala escorrendo negras rosas
largando sílabas saborosas
aveludosas, insinuadoras, levitosas

Amigo da noite, o poeta espalha luares
no peito insone de moças, mulheres, velhas-meninas
Incautas

O Poeta tem dedos longos de fala
que se fazem de falo para nos cutucar
Indômitos

Inimigo do cotidiano
o Poeta é surpresoso
é faceiroso, fruteiro

Ahn, poeta sem peia
Fica danadoso pelas casas dos outros
Invadindo lares 
se fazendo de teia

os olhos te olham
mas, nao te podem alcançar
se contentam com a fala cheirosa
e essa poesia marota
feita para encantar

sábado, 22 de setembro de 2012

em sábados



É água, rio em mim
É água, minha cabeça 
Cheia, enxurrada ou lago que dorme
Esvai a humanidade inquieta
Faz de mim límpida morada
Apesar dos abismos
Está aqui a fonte que cura
Em movimento
Alimenta, acalma, abraça
E resplandece em sábados

domingo, 22 de julho de 2012

Na mata



Andando na mata
O caçador me flechou
Ponta funda e franjada chegou à alma

Arrancar, separar, descolar 
Foram verbos vãos e cruéis que articulam dor
Recuei
Desespero, impotência, sobressaltos
Borbulhando em sangue, nem o rio me valeu
Pensei
Menos mágoa é deixar que vá se soltando
Nas águas implacáveis do tempo
Vencerei
Correnteza, banho de cachoeira, folhas 
Orações, canções de fé
Suspirei
Só me valeu a mão do caçador
Puxando a ponta da flecha sem misericórdia
Sangrei
Na beira do rio tive que olhar nos olhos
Quem me curou, quem me feriu
Chorei

terça-feira, 5 de junho de 2012

Vento menina, vento mulher

Flor de vento e luz
Arrepia a água 
Levanta folha
Acende fogo
Relampeja
Tecendo vida
Movimento
Cria o espaço
Muda o ambiente
Acelera
Viceja


Aqui, onde estão os seres humanos.
E o tempo é um e o teu outro...
Vê mais perto
Vai mais longe
Vai mais rápido
Borboleta.




segunda-feira, 4 de junho de 2012

Águas profundas



Sob a lisura do leito em calma
Correntezas violentas
Inesperadamente
Levantam do chão que se pensava limpo
Destroços esquecidos
E o que vem à margem
Embora, mínimo, transborda o entorno
No desaguar: limpa, renova, leva o lodo
Tira o limo das pedras profundas
E revela a si
muitos segredos seus... e do mundo.
O rio sempre é novo.
E é o mesmo, o fundo.



sexta-feira, 1 de junho de 2012

Canto da Sereia





A superfície não dá conta da profundidade.

Teus abismos são como mistérios de sereia:

Ela é segredo, ela é tímida, ela é linda, a voz seduz.
Há quem se encante pelo que vê.
Mas, há quem se encante pelas peles
que vais despindo aos poucos.

Existe gente fascinante neste mundo.

domingo, 6 de maio de 2012


e de repente...
todas as dificuldades se vão
como se nem tivessem exisitido

e não era nada a ser resolvido
era apenas você
que tinha que ser outra
e lidar de outra forma com aquilo

os problemas estão todos aí
e você encara tudo de outro jeito
não é amadurecimento instantâneo

é fé...
outra perspectiva


domingo, 8 de abril de 2012

Faca (para Uila)

As vezes as palavras são faca 
Mas, da carne morta e com sangue pisado
liberam
o que não serve mais à pele.

Como algumas travessias da vida.
As vezes, o que fere também nos limpa.
Renasce!


Quinteto Violado

Para Uila. Com amor de Mamis.

terça-feira, 27 de março de 2012

Tempo ê

Tempo ê!

Os processos caminham ao teu passo
Inexorável
As caminhadas duram de acordo contigo
A chegada acontece ao teu comando
Até o jardim, que somos

Tempo ê!

Semeamos
Aguamos
Observamos
Cuidamos

Avançamos sob geadas, secas, granizos e insetos
Persistimos sob temporais, pragas e ervas daninhas
E no teu ordenamento
Florescemos em todas as cores do arco-íris



"tempo me disse que só com tempo a gente chega lá", Roberto Ribeiro

quarta-feira, 21 de março de 2012

NO SEMBA (por Júlia Couto)


A chegada é rodeada de sorrisos.

Emoções.

A expectativa enorme sempre.

Antes era somente o semba, a dança, o corpo.

Now, tem os olhos do desejo ao longe...

Espia, dança, sorri, samba, encara, semba, yeba, yeba, yeba...

Uma lágrima se prende na garganta.

Espera.

Um corpo solitário na multidão.

Suado e só.

Cada balanço é um passo na direção do desejo... semba.

Espera.

E semba, semba, semba!

Espera.

Molha o corpo.

E yeba, yeba, yeba!

domingo, 18 de março de 2012

Fundo




Embora repletos de mundo.

Que a pureza nos atinja como espada.

Fundo.


"cada tempo em seu lugar", já disse o Mestre Gil

terça-feira, 13 de março de 2012

Do invisível

Há o que parece
O que aparece
O que acontece


Há o que existe
e não se mostra


Do invisível
Não há nada a dizer


Desperdiçar as palavras
Para quê?
Eu já sinto muito.



terça-feira, 6 de março de 2012

Fitas

Todas as asas que eu costurei nos ombros
As plumas, as penas, as fitas


Eu trocaria pelo abraço
Do que fosse capaz
De me transformar num reino de PAZ



Elegia - Caetano Veloso
"Mas ela é um livro místico e somente
A alguns a que tal graça se consente
É dado lê-la"

segunda-feira, 5 de março de 2012

O nome dela é Patrícia


O nome dela é Patrícia


(Em junho de 2011, minha amiga Patrícia Maia me deu este texto de presente de aniversário... Hoje é o aniversário dela. Não mudo uma palavra, mas acrescento: AMO VOCÊ!)

"Sabe aquelas pessoas que você sente empatia de cara?! Aquelas que quando vemos nos reconhecemos nelas, nos identificamos por ser alguém como nós?! Recentemente tive uma "aquisição" dessa. Conheci uma pessoa que tinha tudo para eu olhar para ela e de cara detestar, num vô mentir. Temos o jeito diferente, o gênio diferente, os gostos diferentes. Mesmo assim, quando conversamos pela primeira vez parecia que já existia uma amizade de anos. Nós tornamos amigas, companheiras de profissão. Em um curto espaço de tempo demos muitas gargalhadas, trabalhamos, discutimos, brigamos, fizemos as pazes, passeamos. Fomos hora vilãs, hora mocinhas. As vezes amadas, outras vezes odiadas. Fomos a mistura de café com leite, do quente com o frio. Empatia com empatia. 

Eu li em algum lugar que a palavra empatia significa "entrar no sentimento". Acredito que entrar no sentimento do outro nos ajuda a entender melhor as pessoas e, principalmente, entender a nós mesmos. Nos ajuda a nos soltar do nosso jeito rígido e entrar no mundo (diferente) dos outros. Nos ajuda a formar uma "mistura" de qualidade. É como diz o Pequeno Principe "se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro".

Conservo poucos, mas bons amigos. Conto nos dedos quem realmente importa." 

Por Patrícia Maia, Originalmente publicado no Blog da Paty.

sábado, 3 de março de 2012

Aqui, na mata

(arquivo pessoal, Alto do Paraíso/GO)

Aqui, na mata
Folha verde macerada
Ouro marrom em águas
Passo solar de caçador 
Guerreiros passeiam
Deusas bailam
Ao som de tambores negros
Toque sagrado, toque do mundo
Flores amarelas no ar
Semeiam.

Na Lua crescente
O pensamento se move na maré
O corpo toca nas folhas
O espírito dança com o Pai
O sentimento é cachoeira
O amor se faz dourado, vermelho e verde
Sob o manto do céu
Clarão.

O que sinto se não se divide
Se multiplica e é um
Tudo em fé se faz sagrado no dia a dia
Sem medo, sem controle
Indo e voltando do fora e dentro de si
Tudo é movimento
Aqui, na mata.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Eu voo



Antídoto contra qualquer veneno é o riso. 
O amor tipo A.
Sonhos e segredos compartilhados.
O mundo pode se cansar...
se esfolar inteiro
tentando ser árido e cruel
Quem tem natureza réptil, que rasteje.


Eu voo.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A água minou, minou...

Oxum na mata


Um dia
O espelho das águas se encheu de luz
E a água minou, minou...
Água pura de Oxum correu
Purificando os corações
Repletos de mundo
E a correnteza sem destino
Se transformou no lago dos olhos
Até transbordar de amor... 
Leva tempo.

Há quem me faça sentir...

Um templo sagrado.
Uma cachoeira na mata.
Uma deusa que dança.
Há quem me faça sentir...
que sou toda amor.

Oxum é amor, amor... Oxum é amor.


"e aos seus pés, vão se encostar nos instrumentos"

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Alfazema

 poesia e magia bastam

----------------------------------------------------------

A Mão do Amor, de Roque Ferreira.

Eu queria que a mão do amor
Um dia trançasse
Os fios do nosso destino
Bordadeira fazendo tricô

Em cada ponto que desse
Amarrasse a dor

Feito quem faz um crochê
Uma renda, um filó
Unisse as pontas do nosso querer
E desse um nó

Nó de muringa de correr
Nó de fié
Nó de guia, botão de rosa
Nó de ané



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Amor não é brinquedo - Viva Candeia!

Amor não é brinquedo - Candeia, por Martinho da Vila


Se quiser se distrair, ligue a televisão
Amor, comigo não

(...)

Eu fecho esta porta te deixo de fora
Depois curto uma saudade...


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Dos encontros



Na vida, 
muitas vezes os corpos se tocam
e as almas, nunca.
"Não tem explicação.
Não tem, não tem, não tem..."

Eu não errei quando juntei minha alma a sua.

domingo, 15 de janeiro de 2012

As forças do Samba

Encontrar amiga/s, beber, conversar, ver e conhecer pessoas, dançar. Essa é a face visível do samba, seu entorno e espaço de excelência, o da interação social. Dá para fazer e ouvir  sozinho, no carro, em casa, e sem  beber, é fato. Mas, viver o samba com gente em volta é outra pegada.

A vivência do samba se dá mesmo é na roda, na troca de sorrisos entre desconhecidos e amores de todos os feitios, no suor, no copo quebrado, na coragem de quem tira o outro pra dançar, na desafinação de quem acompanha os bambas. Se faz em nossa casa, na casa dos outros, no ônibus, na rua, no estádio de futebol, em shows e em bares, haja lugar!

Uma coisa fundamental a dizer... é negro. Uma forma de expressão da cultura negra. Mesmo quando quem canta/toca não é. A negritude do samba é uma primazia, nem se nega, nem se cria. Quem canta, faz e ama o samba pode nem pensar nisso... mas, quem vai contestar?

Os primeiros que fizeram, seja África, Rio ou Bahia - assunto para mais muitas teses - não tinham muitos recursos e a democracia de criar ritmo a partir de um toque percussivo e vozes persiste, existe até na caixa de fósforos, como nos ensinou Dicró. O samba é um dos instrumentos relacionais mais democráticos da nossa sociedade. A cozinha, não por acaso, é o coração do samba, é a percussão que atinge nossa diafragma e nos move junto com a melodia das cordas e das vozes. O império de Neguinho do Samba, Mestre Marivaldo do Ilê, Guto Martins.

E nesse universo, vêm as divas, os reis, as rainhas, os mestres, os bambas, os malandros, as diletantes (onde me incluo), as personagens do espetáculo. A constelação de estrelas, famosas ou não, é vasta e democrática. Tem a majestade de Clementina e Dona Ivone Lara. A beleza e sofisticação vocal de Tereza Cristina, Cris Pereira e Martinália. A intensidade e prazer em cantar de Tereza Lopes, Beth Carvalho e Zeca Pagodinho. A delicadeza de Paulinho da Viola e Mariene de Castro. O talento de composição de João Nogueira, Nelson Cavaquinho e Pixinguinha. A presença cênica, o poder de encanto de Alcione, Diogo Nogueira e Vinicius de Oliveira.

No samba tem espaço para a tristeza da lembrança, a saudade, para pensar! Seja no que vivemos ou nos que se foram, mas deixaram algo em nós, como Clara Nunes, Cartola e Noel Rosa. Na fé, que se fortalece. É a série afro-religiosa de Baden-Powell, um samba-enredo que celebra Nossa  Senhora, o cântico de vitória e a crença de Minha Fé. Está na música-tema que conta a história de Hilda Jitolu, matriarca do Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil. Sim, os blocos afros fazem samba-reggae, afinal.

A amizade é celebrada e... queremos ir acompanhados de quem gostamos, já percebeu? Confiança, é algo a cultivar onde a gente se expressa tanto! E bebe, fala e faz besteira (quem não?) E aí tem Meu Lugar, para acompanhar o prazer da amizade, cantado com ternura por Arlindo Cruz e, ainda, a delicadeza de Conselho, onde Jorge Aragão expressa o carinho desinteressado que esperamos e devemos receber dos amigos. 

E tem política e a comunicação, como em Zé do Caroço. A autonomia humana está lá em Maneiras. A sedução envolvente de Disritmia, as promessas que ocupam Cabide tão bem, né não? A traição se traduz em Nervos de Aço. A decepção em Regra Três. A esperança em O Amanhã. As dúvidas, alegrias, as relações, resistências, amor, luta, arrependimentos, nascimento dos filhos... qual pulsão humana o samba ainda não traduziu?

Todas as forças agem em mim quando estou na roda. Eu aprendo, eu cresço, eu faço amigos. Eu fico melhor como ser humano, por que a matéria-prima do samba é a humanidade. Me reconheço, me celebro, lamento, protesto, lembro, esqueço e recomeço. Todo samba é um renascimento. Existe, sim, uma força maior que nos guia.

No samba eu me sinto contente. Até a próxima roda.

PS - Esse texto, onde citei talentos de Brasília e Salvador, também é um agradecimento ao Samba do Peleja, onde ninguém é profissional e todos celebram.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Mudo, logo existo


Tem dias que a gente se sente... E tem dias que não.
Tem dias que a única coisa a fazer é cumprir tarefas, prazos, dar conta, mostrar a que veio, ser responsável, solidário, ser Mãe, ser legal, ser amiga. E a gente nem tem tempo, fôlego ou ânimo para se sentir. E para mudar o que preciso (e não o que esperam que eu mude). Eu preciso me sentir.
Vem aquela infeliz da culpa e nos acusa de egoísmo ou vagabundagem se não vamos adiante, representando, fazendo, interagindo, indo aos lugares em que acontecem as coisas que gostamos, onde estão as pessoas legais e que te enriquecem. 
O custo de estar em dias é alto, meu povo. 
Estar em dias sempre pode te despersonalizar na multidão. Pois, afinal, há códigos e regras em todo grupo/lugar. Mimetizar sempre seria meu fim, com esse ascendente em Leão e essa pulsão geminiana para comunicar. Não sou mais uma nem quero ser. Aliás, modéstia bem lá a parte (que sou baiana mesmo) nem tem como. Saravá!
Aprendi com alguns amigos, homens e mulheres, que tem a hora do não. Não vou, não dá. E não é por que não posso, ou não sou capaz, ou não to afim ou não é bom. É só por que não quero naquele momento e... preciso ficar sozinha. Me ver, escutar, enxergar de verdade, sem mediação.
Mesmo que eu esteja como quem partiu ou morreu, que algo esteja estancando... ou jorrando! Mesmo que esteja tão alegre que poderia sair dançando. Aí, danço aqui em casa mesmo. Ou não.
Vou saindo e voltando. Interagindo e calando. Me vendo... e pensando.
Me sentindo muito delicadamente por que minha pele está novinha esses dias.
Cobra que troca de pele?
Mas, eu me sinto mais camaleoa mesmo. É bom ser transitiva na superfície para não correr perigo, para não destoar, mas gestar uma essência compacta que te torne inconfundível. Tenho certeza que é a diferença que nos humaniza.
Sem medo de ser absurda, estranha, imprevisível, me dou tempos para preparar cores para minhas superfícies. Mudo, logo existo.

sábado, 7 de janeiro de 2012

A FEIRA (de Eduardo Galeano)

registro de temperos feitos na última temporada de amor/aprendizado com Mãe/filha juntas

A ameixa gorda, de puro caldo que te inunda de doçura, deve ser comida, como você me ensinou, com os olhos fechados. A ameixa vermelhona, de polpa apertada e vermelha, deve ser comida sendo olhada.


Você gosta de acariciar o pêssego e despi-lo a faca, e prefere que as maçãs venham opacas para que cada um possa fazê-las brilhar com as mãos.

O limão inspira a você respeito, e as laranjas, riso. Não há nada mais simpático que as montanhas de rabanete e nada mais ridículo que o abacaxi, com sua couraça de guerreiro medieval.

Os tomates e os pimentões parecem nascidos para se exibirem de pança para o sol nas cestas, sensuais de brilhos e preguiças, mas na realidade os tomates começam a viver sua vida quando se misturam ao orégano , ao sal e ao azeite, e os pimentões não encontram seu destino ate que o calor do forno os deixa em carne viva e nossas bocas os mordem com desejo.

As especiarias formam, na feira, um mundo à parte. São minúsculas e poderosas. Não há carne que não se excite e jorre caldos, carne de vaca ou de peixe, de porco ou de cordeiro, quando penetradas pelas especiarias. Nós temos sempre presente que se não fosse pelos temperos não teríamos nascido na América, e nos teria faltado magia na mesa e nos sonhos. Ao fim e ao cabo, foram os temperos que empurraram Cristovão Colombo e Simbad, o Marujo.

As folhinhas de louro têm uma linda maneira de se quebrarem em sua mão antes de cair suavemente sobre a carne assada ou os ravioles. Você gosta muito do romeiro e da verbena, da noz-moscada, da alfavaca e da canela, mas nunca saberá se é por causa dos aromas, dos sabores ou dos nomes. A salsinha, tempero dos pobres, leva uma vantagem sobre todos os outros: é o único que chega aos pratos verde e vivo e úmido de gotinhas frescas.